O juiz Luiz Carlos Rezende e Santos, titular da Vara de Execuções Penais de Belo Horizonte, publicou nesta quarta-feira, 11, em sua conta no Facebook, carta aberta ao médico Dráuzio Varella. Leia abaixo na íntegra:



Carta aberta ao Dr. Dráuzio Varella.

Prezado Doutor,

Comecei a conhecer os presos, quando aos 28 anos de idade, assumi minha primeira comarca. Seguindo orientações de minha mãe, logo que cheguei a cidade, visitei o pároco, e dali, fui a cadeia, a pé mesmo, pois era bem pertinho.

Na prisão senti aquele cheiro (que depois de muitos anos soube que era de gente apodrecendo) e vi as latrinas antigas e sujas junto as camas dos prisioneiros. Parecia que só eu estava incomodado com aquilo, nem mesmo os presos e os demais que ali estavam, ou me acompanhavam, estranhavam aquele ambiente.

Curioso, ao retornar ao fórum, resolvi olhar a situação de cada um dos presos, e verifiquei que dentre eles, havia um que estava condenado a seis anos de prisão por um hediondo crime. O rapaz estava a seis meses do livramento condicional, e sempre esteve  preso na pequena cadeia em regime fechado. Ele tinha a época exatos 21 anos 6 meses e 2 dias de idade. Portanto, praticou o crime 2 dias após alcançar a maioridade penal.

Pensei muito sobre a situação, e como o moço  não tinha qualquer outro registro desabonador e estava próximo de conquistar a liberdade, o autorizei a trabalhar no fórum, remir sua pena e receber pelo menos um banho de sol duradouro  para colorir a pele, antes de voltar para casa, na zona rural daquela comarca no campo das vertentes em Minas Gerais.

Com o tempo, ele perdeu um pouco a timidez e trabalhou bem com o que sabia. Limpou o quintal, ajudou em pequenas tarefas domésticas, podou o pomar, arrumou a cerca da divisa, além de substituir algumas telhas do telhado do centenário prédio que abrigava o fórum.

Mal se ouvia a voz dele. Passados alguns meses procurou-me pedindo para que autorizasse sua mãe, um dia por semana,  almoçar com ele no fórum. Assim começaram a retomar a convivência depois de tantos anos afastados pelas grades.

Passado o período, na audiência de livramento condicional, dois dias após o "criminoso" completar 22 anos de idade, descobrimos algo terrível. Embora preso por quatro anos, aquele rapaz seria solto, mas não sabia sequer assinar o próprio nome no termo que lhe devolveria a liberdade.

Sinto o choque que recebi naquela tarde até hoje. Alguém custodiado pelo Estado, por tanto tempo, e ao final recebe só o castigo, e a obrigação de carregar para sempre o preconceito de ter passado pela prisão.

Assim, fui descobrindo, que a forma de cumprimento da pena, que busca punir e recuperar, faz com que a segunda parte quase nunca seja lembrada.

Dr. Dráuzio, quando houve a tragédia do Carandiru, eu era ainda estudante, e fiquei muito impressionado, sobretudo com as fotografias que revelavam os horrores das mortes das pessoas, as quais se viam depositadas em corpos nus dentro de dezenas de caixas em meio a verdadeiro mar de sangue.

Devo dizer-lhe que sempre gostei de seus artigos e comentários sobre suas andanças nas prisões. O cuidado dispensado aos presos, a atenção quanto a saúde deles, e seus bons conselhos para que voltem ao convívio social melhores do que chegaram,  deixam-me encantado.

A minha vida, desde o caso que lhe relatei, no início de minha carreira, trouxe-me próximo ao drama do sistema penal, e hoje, passados quase vinte e dois anos, quis o destino que me ocupasse da maior Vara de Execuções de Minas Gerais.

Nas visitas às penitenciárias ficava, a princípio, curioso em saber o que os presos fizeram com suas vítimas. Mas o tempo ensinou-me que em relação à conduta com a vítima o Estado já tinha dado a resposta aplicando a pena ao malfeitor. O que me restava, portanto, era tentar fazer algo para aquele criminoso, a fim de que ele se transformasse em uma pessoa melhor do que chegou a prisão.

Para tanto deveria ter em mente que não poderia julgá-lo novamente pelos fatos que o levaram até ali. Ora, se já sentenciado, não poderia experimentar nova pena pela mesma conduta.  Assim, como juiz de execução, procuro não me contaminar com o passado do apenado e tento motivar a sociedade a contribuir com sua parte para que ele receba tratamento mínimo de dignidade, na esperança da reconstrução  de seus valores.

Foi assim que conheci muitos “Drs Dráuzios Varella", profissionais de todas as áreas que tem interesse único no ser humano por detrás das grades, e não no criminoso que o levou aquela situação.

A lição da misericórdia não tem qualquer similaridade com indulgência, pois é um ato de puro respeito ao ser humano, feito a semelhança do próprio criador.

Amar ao próximo é algo incondicional, e nada tem a ver com desprezo a vítima. Mas o que está na minha responsabilidade é o condenado, e o dever do juiz é fazer com que ele cumpra a pena, e deixe a prisão melhor do que quando entrou. Do contrário o Juiz será o carrasco, e faz que o Estado jogue dinheiro público fora para transformar a sociedade cada vez mais perversa, com criminosos  violentos e perigosos.

Sabe Dr Dráuzio, por vezes abracei pessoas em cumprimento de pena e senti que aquele gesto era o que podia oferecer para tentar despertar no preso a existência  de um ser humano em seu interior.

Talvez tenha abraçado alguma pessoa que alguém ache que não mereça, mas meu gesto não era de perdão, e sim de oferta de reconstrução humana. Aliás, é o que desejamos. O gesto é de doação, de entrega, e não provoca necessariamente a obrigação de alguma retribuição.

Assim meu caro, não deixe de oferecer seu aperto de  mão, dedo de prosa ou abraço ao apenado.  Isso serve apenas para demonstrar que ainda estamos vivos, e nada tem a ver com nossa profissão.

Ser Médico ou Juiz quando agimos como em seu exemplo, não nos faz só melhores, nos faz o que somos em essência,  muito acima de nossas profissões,  e semelhantes a todos os filhos de Deus: seres humanos.

Abraço respeitoso.

Juiz Luiz Carlos Rezende e Santos